À noite, o mesmo silêncio que torna o sono mais profundo e descansado. De manhã, as árvores de fruto anunciam uma Primavera chuvosa, e as flores querem mostrar-se, assim que o Sol o permitir. A flor de laranjeira deixa o seu cheiro perfumado no jardim, a trepadeira lança a sua flor por entre a caniçada do alpendre. Que bonita é esta estação aqui na aldeia.
Ao sair de casa, o percurso até ao descampado onde soltamos o Piko (o nosso cão) mostra flores selvagens a crescer um pouco por todo o lado. Amarelas, laranja, lilás, alguns jarros. Não se vê ninguém, mas isso já é costume aqui na aldeia… Um prazer para nós, citadinos. Uma realidade preocupante, a desertificação do interior. Mas esta desertificação parece maior desta vez: por esta altura do ano, já se vislumbrariam sinais do turismo pascoal – carros a subir para o único hotel da zona, alguns transeuntes a fazer caminhadas. Agora, nada. Nós, o cão, a bela vegetação, os sons de gado e o assobio do pastor (que não chegamos a ver), diferentes cantos de pássaros que se ouvem distintamente.
Até aqui, nada de muito estranho e pouco usual.
Mas a descida até à rua central da aldeia já confirma um cenário nunca visto (e já prometido na noite da chegada): nada aberto. Nem o café da dona E, nem a bomba do senhor A, nem o café do mercado. Nem o restaurante G, nem a meia dúzia de lojas que se dedicam a negócios que variam entre santinhos e velas, roupa variada, um cabeleireiro, um talho (apenas aberto em dias de mercado). Nada. É estranho. Aquela coisa de ir ali à dona E comprar umas batatas ou um chocolate já não é possível. Em vez disso, lá vamos de lista de compras até ao super-mercado mais próximo. E aí o filme a sério começa (as lojas fechadas na aldeia foi só a publicidade antes da projecção do filme): pessoas de máscara esperam cá fora; nós, de máscara, esperamos pela nossa vez. Que sorte, saíram duas pessoas, podemos entrar os dois. Lá dentro, os empregados de luvas, viseiras e máscaras atendem. Os clientes evitam cruzar-se. Uma imagem do mundo que nos espera? Parece um filme fraquinho de ficção científica, daqueles de que nunca gostei. Mas não é.
De regresso ao sossego do lar. Tudo como sempre, o Piko aos saltos para nos receber, as tardes lendo, ouvindo música, organizando um escritório improvisado no quarto disponível da pequena casa. Até que chegam as notícias das 20:00 (hoje em dia, procuramos só ouvir uma vez por dia): o número de infetados, as mortes (“só morreram mais 16 pessoas, é uma percentagem francamente inferior à dos outros países”, dizem. Será, certamente…). Nos lares, a tragédia de sucessivas mortes solitárias (nem quero imaginar). No resto do mundo, um cenário dantesco de hospitais repletos de doentes ligados a ventiladores, moribundos, de outros que recuperam, de médicos e enfermeiros exaustos e deprimidos que não podem esmorecer, de morgues improvisadas em capelas e camiões frigoríficos, de funerais e cremações em série, lúgubres, de gente que chora olhando para caixões onde estão pessoas que um dia beijaram, abraçaram, amaram.
Costumo dizer que ainda bem que não conseguimos adivinhar o futuro. Embora o contexto nada tivesse a ver com aquilo que estamos a viver – uns na linha da frente do combate, outros (como eu e muitos) à confortável distância, numa bolha – de facto, para todos os que têm perdido os seus entes queridos sem sequer a possibilidade de um último beijo, festa, palavra, terá sido bom não saberem que iria ser assim. Para aqueles, como eu, que felizmente não perderam ninguém nestas condições, será cada vez mais uma chamada de atenção para a urgência do primado do essencial. “O essencial é invisível aos olhos”, dizia Antoine de Saint-Exupéry na sua obra O Principezinho. O essencial é termos saúde e cuidarmos daqueles que amamos – família, amigos, pessoas especiais, animas de estimação. Cuidar é falar, saber da pessoa, ajudar, estar lá (ainda que à distância). Cuidar é agir.
E agora a pergunta: que lições podemos tirar desta pandemia para a escola? Para um processo pedagógico? Para a própria definição do que, efectivamente, é uma escola? Ou do que poderá ser, ou deverá ser?
Uma escola não é, para mim, apenas um repositório de alunos, de professores e de outro pessoal, onde a principal função é a da transmissão de conteúdos das várias disciplinas. Também é. Mas não é só. E é aí que esta pandemia, da pior forma, nos pode ajudar a entender a falta que nos faz a presença do outro – do colega/amigo com quem partilhamos, até do outro com quem embirramos, do professor “chato” que lá está semanalmente, do auxiliar sempre presente e disponível para o que quer que seja, das disciplinas que entendemos “não servirem pra nada”, mas das quais sentimos tanta falta, das filas pro almoço, dos equipamentos que por vezes não funcionam como gostávamos…porque tudo isso faz parte da nossa experiência escolar e ficará depositado nas nossas memórias (“lembras-te daquela coluna que nunca funcionava? Sim, tínhamos que trocar todas as aulas pela que funcionava…”). Soa familiar? Que saudades…
Uma experiência escolar é composta de várias camadas, se quisermos. Mas o mais importante, para mim, é a parte humana, os laços que se criam, as relações que se estabelecem. Uma experiência escolar é uma experiência para a vida. Uma experiência SOLIDÁRIA. Que esta bolha onde nos encontramos (os que podem, como eu) nos sirva para entendermos melhor o valor uns dos outros, ainda que à distância de uma video-aula (o meio não é o mais importante – não é o “essencial”). E que nos torne mais humanos, mais solidários. Mais vivos. Se tivermos essa sorte.
Isabel Campêlo